27/04/2024

A Matemática da Vida






A matemática da vida não é simples
Cada soma é também uma subtração.
Quando somamos mais um ano àqueles que já vivemos, subtraímos um ano daqueles que nos restam para viver.
Esperamos demais para fazer o que precisa ser feito, num mundo que só nos dá um dia de cada vez, sem garantia do amanhã.
Enquanto lamentamos que a vida é curta.
Agimos como se tivéssemos à nossa disposição um estoque inesgotável de tempo.
Esperamos demais para dizer as palavras do perdão que devem ser ditas, para pôr de lado os rancores que devem ser expulsos, para expressar gratidão, para dar ânimo, para oferecer consolo.
Esperamos demais para enunciar as preces, para executar as tarefas que estão esperando, para serem cumpridas.
Para demonstrar amor que talvez não seja mais necessário amanhã.
Esperamos demais nos bastidores, quando a vida tem um papel para desempenharmos no palco.
Deus também está esperando nós pararmos de esperar.
Esperando nós começarmos a fazer agora tudo aquilo para o qual este dia e esta vida nos foram dados.
Meus amigos: é hora de viver.


Marhta Medeiros




23/04/2024

Poema Como a Primavera - Bernardina Vilar





Se nasce a flor nos prados verdejantes
Ornamentando as orlas do caminho,
Voltam as andorinhas voejantes
Procurando os beirais do antigo ninho.

Adejam em semi-cÍrculos, doidejantes
Buscando o aconchego de um carinho ...
E com as asas ruflando, estonteantes
Chegam se agasalhando de mansinho.

A quem já não mais crê volta a esperança!
Vem a ilusão e os sonhos, a quimera...
Que vão e voltam no passar dos anos...

E como não me foges da lembrança
Quero que voltes como a primavera
Pra florescer meus tristes desenganos.


Bernardina Vilar
In ‘Bom dia, Saudade!’ (1995)




20/04/2024

Trova - Quem as suas mágoas canta - Mário Quintana




Quem as suas mágoas canta
Quando acaso as canta bem
Não canta só suas mágoas,
Canta a de todos também.


Mário Quintana
In A cor do invisível, 1989




17/04/2024

Canção de Agora - Poetisa Lila Repoll




Ontem meu peito chorava.
Hoje, não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

Estava ontem sozinha,
tendo a meu lado, sombria,
minha própria companhia.
Hoje, não.

Morreu de tanto morrer
a pena que em mim vivia.
Morreu de tanto esperar.
Eu não.

Relógios do tempo andaram
marcando o tempo em meu rosto.
A vida perdeu seu tempo.
Eu não.

Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.


Lila Ripoll
Publicado no livro O Coração Descoberto (1961)



13/04/2024

Conta e Tempo - Frei António das Chagas





Deus pede estrita conta de meu tempo.
E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?

Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado, e não fiz conta,
Não quis, sobrando tempo, fazer conta,
Hoje, quero acertar conta, e não há tempo.

Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta!

Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo,
Quando o tempo chegar, de prestar conta
Chorarão, como eu, o não ter tempo...



Frei António das Chagas, in 'Antologia Poética'





09/04/2024

Para os livros - Poema de Cecilia Meireles



Para os livros, cujo perfume
de campo e verniz fascinava
meus olhos e meu pensamento,
não tenho tempo.

Para a flor, o linho, a ramagem,
a cor, que me arrastavam como
por um bosque múrmuro e denso,
não tenho tempo.

Nem para o mar, nem para as nuvens,
nem para a estrela que adorava
não tenho, não tenho, não tenho
não tenho tempo.

Canta o pássaro inútil ritmo,
os homens passam como sombras,
e o mundo é um largo e doido vento.
Não tenho tempo.

Longe, sozinha, arrebatada,
entro no circulo secreto
e a mim mesma não me pertenço.
Não tenho tempo.

Oh, tantas coisas, tantas coisas
que a alma servira com delicia...
(São nebulosas de silencio...)
Não tenho tempo.

Lagrimas detidas – meus olhos.
Sofro, porem já não batalho
entre saudade e esquecimento.
Não tenho tempo.

Aonde me levam? Que destino
governa a delirante vida?
Nem hei de morrer como penso.
Não tenho tempo.

Tão longe esforço, e tão penoso
- e agora fechado o horizonte.
Ó vida, inefável momento,
- não tenho tempo...



Cecília Meireles
In: Poesia Com
pleta



06/04/2024

Entre o Céu e o Mar - Alvina Nunes Tzovenos




Entre o céu e o mar
Há o infinito de esperas,
Conflito de incertezas,
Interrogação de cores,
Tristeza no olhar,
Prenúncio de paisagens.


Alvina Nunes Tzovenos
in “Busca de Infinitos”





02/04/2024

Sou de Vidro - Lídia Jorge






Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido

Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita


Lídia Jorge



30/03/2024

Prece - Adair Carvalhais Junior





Dá-me a lucidez das correntezas
para que eu descubra
entre as tristezas que se
avolumam algum
sorriso mesmo
que não seja para mim.

Dá-me a serenidade de uma
estrela para que eu imagine
entre as lágrimas que não
me deixam qualquer
paz ainda que breve.
~
Dá-me a claridade das
luas cheias para que eu invente
entre as angústias
que se esparramam um
horizonte mesmo
que se transmutem em ilusão.

Dá-me a esperança das
árvores para que eu teça
entre as ausências que se
intensificam uma sanidade
ainda que estofada de delírio


Adair Carvalhais Junior




26/03/2024

A Distribuição do Tempo - Carlos Drummond de Andrade




Um minuto, um minuto de esperança
e depois tudo acaba. E toda crença
em ossos já se esvai. Só resta a mansa
decisão entre morte e indiferença.

Um minuto, não mais, que o tempo cansa
e sofisma de amor não há que vença
este espinho, esta agulha, fina lança
a nos escavacar na praia imensa.

Mais um minuto só, e chega tarde.
Mais um pouco de ti, que não te dobras,
e que eu me empurre a mim, que sou covarde.

Um minuto e acabou. Relógio solto,
indistinta visão em céu revolto,
um minuto me baste e a minhas obras.


Carlos Drummond de Andrade




23/03/2024

Retrato - Marli de Oliveira




Deixei em vagos espelhos
a face múltipla e vária,
mas a que ninguém conhece
essa é a face necessária.

Escuto quando me falam,
de alma longe e rosto liso,
e os lábios vão sustentando
indiferente sorriso.

A força heroica do sonho
me empurra a distantes mares,
e estou sempre navegando
por caminhos singulares.

Inquiri o mundo, as nuvens
o que existe e não existe,
mas, por detrás das mudanças,
permaneço a mesma, e triste.


Marli de Oliveira
De Cerco da Primavera (1958)



20/03/2024

Perseverança - Ana Jácomo





Jogo a minha rede no mar da vida e às vezes, quando a recolho, descubro que ela retorna vazia. Não há como não me entristecer e não há como desistir. Deixo a lágrima correr, vinda das ondas que me renovam, por dentro, em silêncio: dor que não verte, envenena. O coração marejado, arrumo, como posso, os meus sentimentos. Passo a limpo os meus sonhos. Ajeito, da melhor forma que sei, a força que me move. Guardo a minha rede e deixo o dia dormir.

Com toda a tristeza pelas redes que voltam vazias, sou corajosa o bastante para não me acostumar com essa ideia. Se gente não fosse feita pra ser feliz, Deus não teria caprichado tanto nos detalhes. Perseverança não é somente acreditar na própria rede. Perseverança é não deixar de crer na capacidade de renovação das águas.

Hoje, o dia pode não ter sido bom, mas amanhã será outro mar. E eu estarei lá na beira da praia de novo.


Ana Jácomo




16/03/2024

Canção da Chuva - Lila Ripoll





Cai uma chuva tão fina
que quase nem molha a gente.
É uma música em surdina
que apenas a alma sente.

Junto meu rosto à vidraça
e olho a rua sem pensar.
Fico em estado de graça,
como quem vai comungar.

Senhora dos mundos vivos,
Nossa Senhora da Vida,
quantos dias negativos
na minha estrada perdida!

Senhora tu não devias
permitir tantos enganos.
Há excesso de alegrias,
e excesso de desenganos.

Por onde andaram meus passos
vi sinais de desalentos.
Vaguei por muitos espaços
e senti todos os ventos.

Ventos do sul, vento norte,
ventos do leste e do oeste,
tão diversos como a sorte
que tu, na vida, nos deste.

Senhora dos mundos vivos,
Nossa Senhora da Vida —
quantos dias negativos
na minha estrada perdida!


Lilla Ripoll
Publicado no livro Céu Vazio: poesia (1941)



13/03/2024

O Tempo - Flora Figueiredo





Mais uma vez o tempo me assusta.
Passa afobado pelo meu dia, atropela minha hora, despreza minha agenda.
Corre prepotente, para disputar lugar com o vento.
O tempo envelhece, não se emenda.
Deveria haver algum decreto que obrigasse o tempo a desacelerar e a respeitar meu projeto.
Só assim, eu daria conta dos livros que vão se empilhando, das melodias que estão me aguardando;
Das saudades que venho sentindo,
Das verdades que ando mentindo,
Das promessas que venho esquecendo,
Dos impulsos que sigo contendo,
Dos prazeres que chegam partindo,
Dos receios que partem voltando.
Agora, que redijo a página final,
Percebo o tanto de caminho percorrido
Ao impulso da hora que vai me acelerando.
Apesar do tempo, e sua pressa desleal,
Agradeço a Deus por ter vivido, amanhecer e continuar teimando ...


Flora Figueiredo



04/03/2024

Um mês pelo Dia Mundial da Poesia - Participação no Blogue amiga Rosélia





Foi com muito prazer que aceitei o convite da Amiga Rosélia no Blogue Escritos da Alma, para participar do Dia Mundial da Poesia. Como não sou poeta, deixo como minha participação, um poema de Alvina Tzovenos.


Violinos em Festa



Li um dia, não sei onde

Há uma quietude no ar,
há rouxinóis perdidos
e a carícia que é sentida...

Que doce melancolia!

Há emoções,
violinos em magia,

É poesia
plena de paixão!


Alvina Tzovenos
In Sonhos e Vivências



Miminho recebido da amiga Rosélia. Muito obrigado  ❤️



02/03/2024

Paisagem - Eugénio de Andrade





A névoa que desde manhã fechava
as portas todas ao rio foi-se embora.
A luz é fria: esta é agora
a minha terra, o outono.
Todas as terras são afinal as mesmas
folhas cobrindo a relva, às vezes
cintilando quando o sol rasga a névoa.


Eugénio de Andrade



24/02/2024

A Lua no Cinema - Paulo Leminski





A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava para ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!


Paulo Leminski




17/02/2024

Procuração





“Hoje eu recebi procuração de
um pássaro para abrir a manhã e
fechar o anoitecer."


Manoel de Barros





Crepúsculo na Mata - Olavo Bilac





Na tarde tropical, arfa e pesa a atmosfera.
A vida, na floresta abafada e sonora,
Úmida exalação de aromas evapora,
E no sangue, na seiva e no húmus acelera.

Tudo, entre sombras, - o ar e o chão, a fauna e a flora,
A erva e o pássaro, a pedra e o tronco, os ninhos e a hera,
A água e o réptil, a folha e o inseto, a flor e a fera,
- Tudo vozeia e estala em estos de pletora.

O amor apresta o gozo e o sacrifício na ara:
Guinchos, berros, zinir, silvar, ululos de ira,
Ruflos, chilros, frufrus, balidos de ternura...

Súbito, a excitação declina, a febre pára:
E misteriosamente, em gemido que expira,
Um surdo beijo morno alquebra a mata escura...


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)


13/02/2024

Breves são os Anos - Ricardo Reis





No breve número de doze meses
O ano passa, e breves são os anos,
Poucos a vida dura.
Que são doze ou sessenta na floresta
Dos números, e quanto pouco falta
Para o fim do futuro!
Dois terços já, tão rápido, do curso
Que me é imposto correr descendo, passo.
Apresso, e breve acabo.
Dado em declive deixo, e invito apresso
O moribundo passo.


Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa



09/02/2024

Participação no blogue da amiga Rosélia - " Chá de flores"





Participando com muito prazer na comemoração dos 9 anos, do florido, poético e maravilhoso blog "Flor do Campo" da amiga Rosélia. O Tema proposto foi: "Chá de Flores"



Num chá de flores, a amizade se revela,
Cores e aromas, numa dança singela.
Em cada pétala, segredos a compartilhar,
No chá da amizade, a vida a perfumar.

Flores e amigos, em harmonia a dançar,
No jardim da amizade, a magia a brotar.
Laços que se entrelaçam, eternos a vibrar.
Parabéns perfumados, ecoam no ar.

Amizade é um laço, forte e constante,
Um presente divino, eternamente vibrante.


Muitos Parabéns querida Amiga!




06/02/2024

O Mar agita-se como um alucinado - Alberto de Oliveira





O Mar agita-se, como um alucinado:
A sua espuma aflui, baba da sua Dor…
Posto o escafandro, com um passo cadenciado,
Desce ao fundo do Oceano algum mergulhador.

Dá-lhe um aspecto estranho a campânula imensa:
Lembra um bizarro Deus de algum pagode indiano:
Na cólera do Mar, pesa a sua Indiferença
Que o torna superior, e faz mesquinho o Oceano!

E em vão as ondas se lhe enroscam à cabeça:
Ele desce orgulhoso, impassível, sem pressa,
Com suprema altivez, com ironias calmas:

Assim devemos nós, Poetas, no Mundo entrar,
Sem nos deixarmos absorver por esse Mar
— Pois a Arte é, para nós, o escafandro das Almas!


Alberto de Oliveira




03/02/2024

Penumbra - David Mourão-Ferreira






Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser


David Mourão- Ferreira, Obra Poética ( 1948-1988)




30/01/2024

Noite - Bernardina Vilar




Esvai-se a luz do sol lá no infinito...
A terra inteira cobra-se de luto
Mas as estrelas num piscar bendito
Vão fazendo o clarão do seu reduto.

Por entre as sombras, pressuroso, aflito
Joga-se o rio no penhasco abrupto
Da ave noturna o estridente grito
Corta o silêncio a estrondar de súbito.

Depois a terra dorme. E de mansinho
A lua surge. E pelo seu caminho
Vai desfazendo o crepe dos negrumes.

E a. serra, de luar acobertada,
De pouco em pouco vai ficar bordada
Com um turbilhão de luz de vagalumes.


Bernardina Vilar



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