01/12/2024

Intimidade - José Saramago





No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.


José Saramago



24/11/2024

O Destino da Folha - Lausimar Laus





Irás... eu ficarei folha, sem dono,
Dispersa e então levada pelo vento,
Tu verás que ainda mesmo ao abandono
eu saberei calar o meu tormento.

E quando a folha morta, tão sem dono,
For levada daqui, num desalento,
Há de levar para velar-lhe o sono
A saudade de ti - único alento -

Hei de sonhar um turbilhão de versos...
E hei de juntar os que já estão dispersos
Como cinzas desfeitas sem calor...

E quando a primavera trouxer lírios,
Acenderei dois sonolentos círios.
E rezarei por ti, por nosso amor!


Lausimar Laus




17/11/2024

Auroras e Crepúsculos - Bernardina Vilar





Todo dia, na fimbria do horizonte
Surge a aurora num sonho embevecido;
Abre-se a flor que expande junto à fonte
Um perfume de amor apetecido.

Mas se o galho tristonho pende a fronte
Acobertando o ninho adormecido
No véu da noite, aconchegando o monte
Chega o crepúsculo em sombras envolvido.

Assim é a vida: flor desabrochada...
Imagem da esperança despertada
Da aurora à luz, de nívea claridade.

E como o berço onde adormece o dia,
No momento de paz da “Ave Maria”.
Esta vida é crepúsculo. É Saudade.


Bernardina Vilar




13/11/2024

Canção das Pedras - Ernani Rosas





Embrandecei pedras duras
À luz da Lua, no outono,
Quando tudo é só saudade
D'um coração ao abandono!...

Quando tudo é só doçura
E noite peninsular,
Quando ao longe, muito longe,
Choram guitarras ao mar.

E noites, onde marujos
Cantaram à luz do luar:
Saudosos da sua terra
Nas plagas além mar.

Embrandecei pedras duras!
Abri os olhos ceguinhos ...
Com que alegria as verei.
Estrelas, na noite escura!

A luz da lua no outono,
Quando alguém canta magoado
Cantigas de Amor passado
Alta noite... ao abandono!...


Ernani Rosas





10/11/2024

O que eu amo ... Zoraide Leonel Ferreira




 
Amo o silêncio dos lagos,
A viração das campinas,
Amo o céu, a paz dos ermos
E as estrelas peregrinas..

Amo a vida, o espaço, o sol,
A esperança que suponho
Ser minha eterna guarida
Nos trigais loiros do sonho..

Amo as aves intranquilas,
Nos bosques cantando amores,
Amo a linda primavera
Que traz sonhos, sons e flores..

Amo o remanso das noite,
A nostalgia do luar,
Também amo as pequeninas
Estrelas do teu olhar..


Zoraide Leonel Ferreira


03/11/2024

Sol Posto - Florbela Espanca




Sol posto. O sino ao longe dá Trindades
Nas ravinas do monte andam cantando
As cigarras dolentes... E saudades
Nos atalhos parecem dormitando...

É esta a hora em que a suave imagem
Do bem que já foi nosso nos tortura
O coração no peito, em que a paisagem
Nos faz chorar de dor e d'amargura...

É a hora também em que cantando
As andorinhas vão p'lo meio das ruas
Para os ninhos, contentes, chilreando...

Quem me dera também, amor, que fosse
Esta a hora de todas a mais doce
Em que eu unisse as minhas mãos às tuas!...


Florbela Espanca
In ‘O Livro D’ele’ (1915 – 1917)



27/10/2024

Traduzir-se - Ferreira Gullar





Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


Ferreira Gullar
- In Toda Poesia



23/10/2024

Lágrimas Perdidas - Bernardina Vilar




Não consigo saber se alguém me ama,
Se acaso alguém merece este meu pranto;
Por mim não sei também se alguém derrama
Uma lagrima de amor que vale tanto!

E quanto mais o meu sofrer se inflama
Mais eu sinto o sabor do desencanto;
Quanto mais choro e a dor de mim se emana.
Mais me envolvo num doloroso encanto.

Chorar? Nem sei por quem! Só sei que choro!
E peço a Deus e a soluçar imploro
Que me diga se devo assim chorar...

E as minhas pobres lágrimas perdidas
Vão rolando talvez despercebidas
Porque afinal ninguém me sabe amar!


Bernardina Vilar
In ‘Bom dia, Saudade’ (1995)



20/10/2024

Voar - Maria Fernanda de Castro






Deve ser bom voar! Abrir as asas,
fechar os olhos e partir sem rumo,
pairar sobre as cidades, sobre as casas,
como pássaro, estrelas, nuvem, fumo...

Deve ser bom voar! Erguer os braços
e acima dos telhados e dos ninhos,
esquecer os sinais de inúteis passos,
fugir ao pó de todos os caminhos...

Mas onde as asas para assim voar,
para subir às nuvens e às estrelas?
As dos homens, são asas de matar...
...e as dos anjos, quem pode pretendê-las ?


Maria Fernanda Teles de Castro
em Trinta e Nove Poesias



16/10/2024

Um Silêncio bem silente





Sou escravo da palavra
Mas dono do meu silêncio.

De uma a outra alvorada
A palavra que foi dada
Necessita ser honrada
Por isto eu sou um escravo
De tudo que foi falado
E pra se evitar o pranto
Para a vida ser encanto
Criando um ambiente santo
É muito conveniente
Um silêncio bem silente.


Walter Dimenstein
Médico e poeta pernambucano



13/10/2024

A Casa do Coração - Friedrich Rückert





O coração tem dois quartos:
Moram ali, sem se ver,
Num a Dor, noutro o Prazer.

Quando o Prazer no seu quarto
Acorda cheio de ardor,
No seu, adormece a Dor...

Cuidado, Prazer! Cautela,
Canta e ri mais devagar...
Não vá a Dor acordar....


Friedrich Rückert
Tradução de Antero de Quental



10/10/2024

Caminho - Martha Medeiros





O caminho é este
tem pedra, tem sol
tem bandido, mocinho
tem você amando
tem você sozinho
é só escolher
ou vai, ou fica.

Fui…


Martha Medeiros
In Poesia Reunida




06/10/2024

Flores - Sophia de Mello Breyner






Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura.


Sophia de Mello Breyner



29/09/2024

Eu queria chorar pelos que não choram





Eu queria chorar pelos que não choram.
Eu queria chorar pelos olhos secos,
Pelos olhos que são fontes
Onde as mágoas se purificam e se libertam.

Eu queria chorar pelos corações feridos
E que sangram obscura e silenciosamente.
Eu queria chorar pelas almas mártires
Que estão invisivelmente entre nós.

Eu queria chorar pelos indiferentes
E pelos que escondem num sorriso
As decepções de uma incompreendida bondade.

Eu queria chorar pelas almas fechadas,
Pelas almas que são como os desertos
E que não conhecem a libertação das lágrimas!


Augusto Frederico Schmidt



22/09/2024

Rosas do Sul - Afonso Estebanez






Repousei minhas rosas andarilhas
numa ilha de agaves sem encanto
um deserto enfeitado de gravilhas
em vias de morrer de desencanto.

Com amor infinito a flor-do-campo
abraçou minhas rosas como filhas
do pólen que gerou o terno canto
do pranto ritmado em redondilhas.

Enquanto havia pausa obrigatória,
julgava que estivesse na memória
esse destino de seguir em frente.

Não só! Eu sou o espírito da rosa
que exalta essa paixão misteriosa
que por amor revive para sempre!


Afonso Estebanez




15/09/2024

Canção de inverno - Helena Kolody





Cai a neve, de mansinho...
Cai a neve em meus cabelos,
Que eram de ouro e são de luar.

Altas torres de castelo...
Cai a neve, de mansinho,
Para os sonhos sepultar.

Cai a neve... tão de leve!

No meu rosto, brando e brando,
Será a neve resvalando.
Ou é o pranto a deslizar?

Helena Kolody
Do livro Viagem no Espelho,




12/09/2024

O Tempo - Bernardina Vilar




Indomável, invencível, arrogante
Como um rio a correr vertiginoso
Não te condóis nem mesmo por instante
Aos clamores de um coração choroso.

Passageiro do mundo, incessante,
Num desafio bruto, desdenhoso,
Vais rasgando num gesto delirante
As entranhas da vida, impetuoso.

Conduzindo aos abismos do passado
Tudo quanto te surge no caminho,
Ó Tempo, não conheces a piedade!

Nada te faz parar. No triste fado
De não retroceder, seguir sozinho,
Só quem te faz deter é a Saudade.


Bernardina Vilar



08/09/2024

Refúgio das Mágoas - Euclides Cavaco





Meus olhos tristes chorando
Brotaram plangentes águas
Mas descobri que cantando
São mais suaves as mágoas!...

Toda a mágoa que na vida
Em silêncio é calada
É sempre mais dolorida
Por nunca ser revelada...

Se a vida fosse somente
Feita de dor e sofrer
Não havia certamente
Mera razão p'ra viver ...

As mágoas que alma sente
E a vida vão torturando
Têm refúgio, se a gente
Levar a vida cantando!...

Euclides Cavaco




01/09/2024

Visitas - Zoraida H.Guimarães





Bom-dia Tristeza!
Posso entrar?
Hoje vim com a Saudade
para te visitar...

Já que a Alegria viajou
depois que o Amor morreu,
viemos te visitar
querida amiga...

Visitar-me diz Tristeza,
não me diga...ora veja...
Enganaram-se com certeza,
Pois também estou de partida.
Vou morar com a Esperança
que ainda é minha amiga.


Zoraida H.Guimarães
In Na Passarela do Tempo



25/08/2024

Gaivota - Alexandre O'Neill





Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
morreria no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.


Alexandre O’Neill




18/08/2024

Mudar dói .... Oswaldo Montenegro





Não pense que o mundo acaba
Ali onde a vista alcança
Quem não ouve a melodia
Acha maluco quem dança
Se você já me explicou
Agora muda de assunto
Hoje eu sei que mudar dói
Mas não mudar dói muito ...


Oswaldo Montenegro





11/08/2024

Amar - Maria Fernanda Teles de Castro





O segredo é Amar… Amar a Vida
Com tudo o que há de bom e mau em nós.
Amar a hora breve e apetecida,
Ouvir todos os sons em cada voz
E ver todos os céus em cada olhar..

Amar por mil razões e sem razão…
Amar, só por amar,
Com os nervos, o sangue, o coração…
Viver em cada instante a eternidade
E ver, na própria sombra, claridade.

O segredo é amar mas amar com prazer,
Sem limites, sem linha de horizonte…
Amar a Vida, a Morte, o Amor!
Beber em cada fonte,
Florir em cada flor,
Nascer em cada ninho,
Sorver a terra inteira como um vinho…

Amar o ramo em flor que há-de nascer
De cada obscura e tímida raiz…
Amar em cada pedra, em cada ser,
S. Francisco de Assis…

Amar o tronco velho, a folha verde,
Amar cada alegria, cada mágoa,
Pois um beijo de amor jamais se perde
E cedo refloresce em pão, em água!


Maria Fernanda Teles de Castro e Quadros Ferro
Blog: Fernanda de Castro




04/08/2024

A Lua Branca - Paul Verlaine






A lua branca
brilha no bosque.
De ramo em ramo,
parte uma voz que
vem da ramada.

Oh! bem-amada!

Reflete o lago,
como um espelho,
o perfil vago
do ermo salgueiro
que ao vento chora.

Sonhemos, é hora…

Como que desce
uma imprecisa
calma infinita
do firmamento
que a lua frisa.

É a hora indecisa…


Paul Verlaine 



29/07/2024

Á amizade - Odette de Saint-Maurice





Ter um amigo é mais do que pensa.
É mais do que dizer - eu sou amigo!
Querer a alguém é dar-lhe sempre abrigo
nas horas más, na luta, na doença.

É repartir o bem que nos pertença
e achar amparo quando houver perigo.
Tal qual a esmola agrada ao mendigo,
ajuda a gente na amizade a crença.

Quando se estime, erga-se barreira
contra o egoismo, a dúvida, a inveja.
Dê-se ao Amigo nossa vida inteira.

Cultive-se a Amizade como flor.
Que a nossa alma saiba, sinta, veja,
que se é sincera, vale mais que amor.


Odette de Saint-Maurice



25/07/2024

Chegar e Ficar - Cecília Meireles





Chegar,
Como brisa que atravessa a janela.
Soprando de leve,
As brumas do passado.

Chegar,
Como o barco.
Trazendo alegrias,
Após enfrentar as procelas sombrias.

Chegar,
Como a saudade.
Que bate,
De manso, no coração.

Chegar,
Como Chuva, fininha,
Mansinha, criadeira,
Necessária e tão querida.

Ficar,
Nas lembranças do passado,
Nas estampas do presente,
A retratar nosso ontem no hoje.

Ficar,
Para sempre.
Na imagem nunca esquecida,
Dos que nos são tão queridos.

A vida,
É chegar e ficar,
Para sempre.
Vida nunca será partida. "


Cecília Meireles



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