30/10/2025

Prece - Maria de Santa Isabel





Ave Maria, minha Mãe do Céu:
Novembro, o mês da morte, aproximou-se,
Toldando o nosso olhar como se fosse
Um denso véu.
Há rosas desmaiadas no canteiro;
É triste a luz do dia;
Parece que um anseio de agonia
Envolve o mundo inteiro!

Rezemos pelos mortos, nesta hora;
Oh Mãe do Céu, ouvi a nossa prece!
Olhai, até parece
Que a natureza chora!
A chuva cai, espavorida;
o vento agita-se, bravio,
Transindo-nos de frio
A alma dolorida!

- Dai aos mortos, Senhor, a paz infinda
Que só no Céu existe,
E os vivos, neste mundo, hostil e triste,
Uma crença maior, maior ainda!


Maria de Santa Isabel




24/10/2025

Dia de Outono - Rainer Maria Rilke





Senhor, foi um verão imenso: é hora.
Estende as tuas sombras nos relógios
de sol e solta os ventos prado afora.

Instiga a sazonarem, com dois dias
a mais de sul, as frutas que, tardias,
conduzes rumo à plenitude, e apura,
no vinho denso, a última doçura.

Quem não tem lar já não terá; quem mora
sozinho há de velar e ler sozinho,
escrever longas cartas e, a caminho
de nada, há de trilhar ruas agora,
enquanto as folhas caem em torvelinho


Rainer Maria Rilke
Tradução de Nelson Ascher,


18/10/2025

A Voz da Saudade - Bernardina Vilar




Se cai a noite plácida, serena,
Tão branca de luar — doce magia...
A carícia da brisa torna a cena,
Num requinte envolvente de poesia.

O azul do céu de uma beleza extrema
Povoado de estrelas irradia,
E qual o encantamento de um poema
Faz palpitar sutil melancolia.

No Coração da mata um mocho pia
Rompendo a solidão num tom dolente,
Como um canto de amarga soledade.

E o coração da gente silencia
Porque mais alto que sua voz ardente
Fala a voz merencória da saudade.


Bernardina Vilar



14/10/2025

Pelos Campos - Hermann Hesse




Pelos céus passam as nuvens,
sobre os campos sopra o vento,
pelos campos erra o filho
perdido de minha mãe.

Pelas ruas rolam folhas,
sobre as árvores há pássaros.
Sobre as montanhas, em algum lugar
minha pátria há de estar.

Hermann Hesse




11/10/2025

Sonhar - Helena Kolody





Sonhar é transportar-se em asas de ouro e aço
Aos páramos azuis da luz e da harmonia;
É ambicionar o céu; é dominar o espaço,
Num vôo poderoso e audaz da fantasia.

Fugir ao mundo vil, tão vil que, sem cansaço,
Engana, e menospreza, e zomba, e calunia;
Encastelar-se, enfim, no deslumbrante paço
De um sonho puro e bom, de paz e de alegria.

É ver no lago um mar, nas nuvens um castelo,
Na luz de um pirilampo um sol pequeno e belo;
É alçar, constantemente, o olhar ao céu profundo.

Sonhar é ter um grande ideal na inglória lida:
Tão grande que não cabe inteiro nesta vida,
Tão puro que não vive em plagas deste mundo.


Helena Kolody



08/10/2025

Ode para engomar - Pablo Neruda





A poesia é branca:
sai da água envolta em gotas,
enruga-se e amontoa-se,
é preciso estender a pele deste planeta,
é preciso engomar o mar com a sua brancura
e vão e vêm as mãos,
alisam as sagradas superfícies
e assim se engendram as coisas:
dia a dia fazem as mãos o mundo,
une-se o fogo ao aço,
chegam o linho, o algodão e o cotim
da faina das lavandarias
e nasce da luz uma pomba:
a pureza regressa da espuma.


Pablo Neruda
In Plenos Poderes





05/10/2025

Noturno - Florbela Espanca





Amor! Anda o luar todo bondade,
Beijando a terra, a desfazer-se em luz...
Amor! São os pés brancos de Jesus
Que andam pisando as ruas da cidade!

E eu ponho-me a pensar... Quanta saudade
Das ilusões e risos que em ti pus!
Traçaste em mim os braços duma cruz,
Neles pregaste a minha mocidade!

Minh'alma, que eu te dei, cheia de mágoas,
E nesta noite o nenúfar dum lago
'Stendendo as asas brancas sobre as águas!

Poisa as mãos nos meus olhos com carinho,
Fecha-os num beijo dolorido e vago...
E deixa-me chorar devagarinho...


Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"



01/10/2025

Luar póstumo - Poema de Cecília Meireles





Numa noite de lua escreverei palavras,
simples palavras tão certas
que hão de voar para longe, com asas súbitas,
e pousar nessas torres das mudas vidas inquietas.


O luar que esteve nos meus olhos, uma noite,
nascerá de novo no mundo.
Outra vez brilhará, livre de nuvens e telhados,
livre de pálpebras, e num país sem muros.


Por esse luar formado em minhas mãos, e eterno,
é doce caminhar, viver o que se vive.
Porque a noite é tão grande... Ah, quem faz tanta noite?
E estar próximo é tão impossível!



Cecília Meireles
In: Poesia Completa




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