30/09/2022

Outono - Miguel Torga




Tarde pintada
Não sei porque pintor...
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como a vinha.


Miguel Torga



24/09/2022

Soneto para Navegar - Poema de Afonso Estebanez Stael





Há um tempo na vida que supomos
ter vencido sem trauma nem feridas
olvidando o sangrar das despedidas
sofridas nos poentes dos outonos...

E há um tempo de rosas renascidas
dos áridos desertos que nós somos
não obstante o estio vão os pomos
adoçando o penar de nossas vidas!

Ainda há um tempo que a saudade
como um rio que chora de piedade
nosso pranto carrega para o mar...

E vai além o nosso amor profundo
cantando no crepúsculo do mundo
a canção que a razão faz navegar!


Afonso Estebanez Stael





17/09/2022

Aquilo que a gente lembra - Poema de Fernando Pessoa




Aquilo que a gente lembra
Sem o querer lembrar,
E inerte se desmembra
Como um fumo no ar,
É a música que a alma tem,
É o perfume que vem,
Vago, inútil, trazido
Por uma brisa de agrado,
Do fundo do que é esquecido,
Dos jardins do passado

Aquilo que a gente sonha
Sem saber de sonhar,
Aquela boca risonha
Que nunca nos quis beijar,
Aquela vaga ironia

Que uns olhos tiveram um dia
Para a nossa emoção —
Tudo isso nos dá o agrado,
Flores que flores são
Nos jardins do passado

Não sei o que fiz da vida,
Nem o quero saber
Se a tenho por perdida,
Sei eu o que é perder?
Mas tudo é música se há
Alma onde a alma está,
E há um vago, suave, sono,
Um sonho morno de agrado,
Quando regresso, dono,
Aos jardins do passado.


Fernando Pessoa
Novas Poesias Inéditas


10/09/2022

CANÇÃO BREVE




Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.


Eugénio de Andrade



03/09/2022

Trova





Trova: soneto do povo,
Flor de nostálgico encanto...
Todo o infinito do amor
Numa só gota de pranto.


MARIO QUINTANA
In A cor do invisível, 1989




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