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27/10/2024

Traduzir-se - Ferreira Gullar





Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


Ferreira Gullar
- In Toda Poesia



23/10/2024

Lágrimas Perdidas - Bernardina Vilar




Não consigo saber se alguém me ama,
Se acaso alguém merece este meu pranto;
Por mim não sei também se alguém derrama
Uma lagrima de amor que vale tanto!

E quanto mais o meu sofrer se inflama
Mais eu sinto o sabor do desencanto;
Quanto mais choro e a dor de mim se emana.
Mais me envolvo num doloroso encanto.

Chorar? Nem sei por quem! Só sei que choro!
E peço a Deus e a soluçar imploro
Que me diga se devo assim chorar...

E as minhas pobres lágrimas perdidas
Vão rolando talvez despercebidas
Porque afinal ninguém me sabe amar!


Bernardina Vilar
In ‘Bom dia, Saudade’ (1995)



20/10/2024

Voar - Maria Fernanda de Castro






Deve ser bom voar! Abrir as asas,
fechar os olhos e partir sem rumo,
pairar sobre as cidades, sobre as casas,
como pássaro, estrelas, nuvem, fumo...

Deve ser bom voar! Erguer os braços
e acima dos telhados e dos ninhos,
esquecer os sinais de inúteis passos,
fugir ao pó de todos os caminhos...

Mas onde as asas para assim voar,
para subir às nuvens e às estrelas?
As dos homens, são asas de matar...
...e as dos anjos, quem pode pretendê-las ?


Maria Fernanda Teles de Castro
em Trinta e Nove Poesias



16/10/2024

Um Silêncio bem silente





Sou escravo da palavra
Mas dono do meu silêncio.

De uma a outra alvorada
A palavra que foi dada
Necessita ser honrada
Por isto eu sou um escravo
De tudo que foi falado
E pra se evitar o pranto
Para a vida ser encanto
Criando um ambiente santo
É muito conveniente
Um silêncio bem silente.


Walter Dimenstein
Médico e poeta pernambucano



13/10/2024

A Casa do Coração - Friedrich Rückert





O coração tem dois quartos:
Moram ali, sem se ver,
Num a Dor, noutro o Prazer.

Quando o Prazer no seu quarto
Acorda cheio de ardor,
No seu, adormece a Dor...

Cuidado, Prazer! Cautela,
Canta e ri mais devagar...
Não vá a Dor acordar....


Friedrich Rückert
Tradução de Antero de Quental



10/10/2024

Caminho - Martha Medeiros





O caminho é este
tem pedra, tem sol
tem bandido, mocinho
tem você amando
tem você sozinho
é só escolher
ou vai, ou fica.

Fui…


Martha Medeiros
In Poesia Reunida




06/10/2024

Flores - Sophia de Mello Breyner






Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura.


Sophia de Mello Breyner



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